Energia 4.0
Artigo publicado no Valor Econômico - Geoberto Espírito Santo
25/06/2018

Por Geoberto Espírito Santo

Valor - Opinião - 22.10.2018 - Diante de um insistente quadro fiscal negativo da nação e dos prejuízos da gestão politicamente temerária das estatais, a demonizada palavra privatização voltou à agenda econômica de nosso país. Antigamente, falar nesse tema era tabu, um crime de lesa-pátria no entender dos ferrenhos defensores da forte participação do Estado na economia. Uma das propostas do Governo para o equacionamento dos problemas estruturais do Brasil foi a inevitável volta desse tema para fechar equações financeiras dos Estados e do governo federal. No caso da Eletrobras, com a emissão de ações que viessem a diluir a participação da União no quadro societário.

De um lado, os estatizantes são contrários à privatização e, do outro, os libertários defensores do mercado. Essas formas de ver a questão não vão desaparecer nunca, mas cabe às lideranças sindicais, empresariais, acadêmicas e políticas informarem à sociedade a real situação de suas estatais com honestidade intelectual e política. Para que os fatos não sejam rejeitados é preciso colocar luz no debate de mais essa polarização existente em nosso país. Mas não, estão distorcendo essa real projeção da luz colocando as sombras, certamente numa posição com o intuito de assombrar, de fazer barulho para tirar vantagens políticas e/ou pessoais na busca do voto desinformado e manipulado, sem maiores responsabilidades com os destinos das nossas gerações.

Alguns argumentos contrários à privatização beiram o catastrofismo e não passam por um debate sério e racional. Vão privatizar a água é um deles, como se o setor elétrico e as hidrelétricas tivessem poder constitucional para tal. Quem regula o uso da água em nosso país, não só para o uso da energia, é a ANA (Agência Nacional de Águas). E quem manda ligar ou desligar usinas é o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), instituição privada, sem fins lucrativos, e o faz objetivando a modicidade tarifária e a segurança energética sem levar em conta se o gerador é de empresa pública ou privada.

Energia é um recurso estratégico sim, mas as empresas não, haja vista os vários modelos corporativos existentes entre o capital público e o privado aqui, e em diversos outros países, função de fatores que vão muito além da ideologia. Na geração, as empresas do Grupo Eletrobras só produzem 31% da eletricidade do Brasil, sendo que os 69% restantes já são de responsabilidade do setor privado. Na transmissão, a Eletrobras tem 46% da quilometragem das linhas e na distribuição temos 63 concessionárias, sendo 57 delas privadas e as seis da Eletrobras, ditas federalizadas.

Recentes estudos de uma renomada auditoria mostraram que as empresas de capital aberto do setor elétrico, desde 2011, perderam R$ 103 bilhões em valor, sendo que 89% coube a Eletrobras. As federalizadas, em 20 anos, deram um prejuízo à holding de R$ 23 bilhões. Se olharmos apenas o ano de 2017, essas distribuidoras apresentaram um balanço negativo de R$ 4,2 bilhões. No caso da venda da concessão das distribuidoras que foram federalizadas é dito apenas que é um absurdo vendê-las por R$ 50 mil, um valor simbólico. É necessário dizer à sociedade que os concessionários vencedores da licitação são obrigados a investir R$ 7,8 bilhões para que possam chegar em 5 anos aos índices de qualidade do serviços exigidos pela Aneel. Caso contrário, perderão as concessões.

Outro argumento é que haverá demissões com a privatização. Certamente ocorrerão, não de uma só vez, porque são empregados antigos, muitos próximos da aposentadoria, que acumularam vantagens cujo salário médio das 6 distribuidoras da Eletrobras (AC, AL, AM, PI, RO e RR) é de R$ 11.763,48 enquanto que o da Neoenergia (BA, PE, RN) é de R$ 4.314,32. Esses direitos adquiridos são garantidos pela legislação trabalhista e muito pior será a liquidação das mesmas, com mais R$ 16 bilhões que sairão dos cofres da Eletrobras.

A política e a energia entrarão em colapso se não acompanharem as mudanças tecnológicas

Se privatizar, a conta de luz vai aumentar porque a empresa privada só visa o lucro. Uma pena que as estatais também não, e a Eletrobras tivesse chegado a esse ponto. Em março de 2014, a relação entre o seu endividamento e a geração de caixa chegou a 9,8 e se fosse empresa privada teria pedido concordata. Só para efeito de comparação, com 6 nesse índice a telefônica Oi recorreu a esse artifício jurídico para não entrar em falência.

Se uma estatal não tem lucro, não tem seu capital remunerado, não terá recursos para reinvestir, para aumentar a produção, criar novos empregos, pagar seus tributos. Para fazê-lo, vai usar recursos dos impostos, que deveriam ser utilizados na educação, na saúde, na segurança pública, na logística nacional. E se esses setores realmente precisam de mais recursos, teremos fatalmente aumento da carga tributária porque continuamos sem coragem cívica e irresponsavelmente adiando as reformas necessárias para diminuição do gasto público.

Quem defende a privatização diz que a conta de luz vai diminuir com uma melhor gestão, sem entrar na essência da questão porque os "esqueletos tarifários" de aproximadamente R$ 100 bilhões vão alimentar o discurso dos contrários quando esses saírem do armário. Essa é mais uma discussão estéril pois a regra do jogo no mercado regulado é a mesma, sendo a empresa pública ou privada.

A conta de luz está em níveis elevados não é pela remuneração do capital, nem pelos custos operacionais. Nos processos de revisão tarifária das distribuidoras, sejam estatais ou privadas, a Aneel utiliza 8,09% para o custo médio ponderado do capital. Do que pesa no nosso bolso, temos quase 48% de tributos, encargos setoriais e custo das térmicas. Se considerarmos que alguns municípios arrecadam a CIP (Contribuição de Iluminação Pública) na fatura de energia elétrica, esse percentual se aproxima dos 59%. A energia elétrica não é mercadoria? Por que, então, cobra-se ICMS sobre ela?

Vivemos num mundo de tecnologia, robótica e inteligência artificial e a sociedade passa por uma profunda transformação econômica, tecnológica e social. As grandes questões que ficam é se teremos formas coerentes e positivas de descrever os desafios e as oportunidades que ocorrerão com essas mudanças e se teremos lideranças capazes de repensá-los para que a sociedade se aproprie dos benefícios. A política e a energia entrarão em colapso se não acompanharem esses movimentos.

Mercado livre, fontes renováveis, matriz diversificada, geração distribuída, já projetam a obsolescência do modelo centralizado de geração, transmissão e distribuição. Fomos consumidores, usuários, clientes e agora somos prosumidores. Estamos aí com a tarifa horária, comercializador varejista, proteção de dados, resposta da demanda, bioenergia, carros elétricos, armazenamento, eficiência energética, portabilidade elétrica, mini grids, redes inteligentes em cidades inteligentes.

A Energia 4.0 está na janela, batendo à nossa porta e o debate é esse: que tipo de empresa e governança corporativa podem assegurar qualidade/preço ao cidadão energético livre para escolher.

Geoberto Espírito Santo é engenheiro e professor do Centro de Tecnologia da Universidade Federal de Alagoas