Grupo chinês tem desafios em hidrelétricas
Ao mesmo tempo que definiu plano de investimento de R$ 3 bilhões em Ilha Solteira (foto) e Jupiá, a CTG Brasil iniciou um programa de treinamento e recapacitação dos funcionáros herdados da Cesp
06/08/2018

Valor - 02.08.2018 - Quando a China Three Gorges (CTG) arrematou o complexo hidrelétrico de Jupiá e Ilha Solteira, no fim de 2015, não imaginava os desafios que teria pela frente. Passados dois anos da transferência do controle das usinas, que custaram R$ 13,8 bilhões em bônus pelas outorgas, a chinesa ainda esbarra em surpresas na operação das duas hidrelétricas que, juntas, somam cerca de 5 GW, quase metade da potência de Belo Monte.

Na época, o investimento foi considerado vantajoso. Por não encontrar concorrentes com capital disponível para uma oferta, a CTG deu um lance sem deságio, garantindo o recebimento de uma receita anual de geração (RAG) de R$ 2,38 bilhões. O montante representa uma receita pela gestão dos ativos, acrescida do retorno da bonificação pela outorga. Outra vantagem é que 70% da garantia física das usinas está no regime de cotas, livre de exposição ao risco hidrológico.

A chinesa tinha feito diligência nos ativos e sabia que havia necessidade de grandes investimentos. O problema foi a urgência de implementação das reformas.

Um plano de modernização precisou ser colocado em prática às pressas, ao custo total de R$ 3 bilhões, porque três das 34 unidades geradoras apresentaram falhas críticas de funcionamento logo nos primeiros seis meses em que a chinesa assumiu os ativos. Os problemas foram de menor porte, mas ameaçavam comprometer a operação de todo o complexo.

Ao Valor, o diretor de Operação e Manutenção (O&M) da CTG no Brasil, César Teodoro, disse que a situação que a companhia encontrou as usinas foi "muito pior" do que eles imaginavam. A ideia inicial era fazer um diagnóstico completo da situação das usinas antes de iniciar as reformas, mas alega que não houve tempo para isso.

"As falhas serviram como alerta. Identificamos que os problemas aconteceram em componentes críticos, e escolhemos duas máquinas de cada usina para iniciar a modernização, que seria mais cadenciada e precisou ser acelerada", disse Teodoro.

Como o governo de São Paulo decidiu privatizar os ativos de energia no fim dos anos 1990, já são 20 anos sem a realização de investimentos na modernização das usinas, que foram construídas entre os anos 1960 e 1970. Jupiá, que tem 1.550 MW de potência, foi a maior hidrelétrica do Brasil quando tiveram início suas operações, em 1969. O posto foi perdido para a usina de Ilha Solteira, que tem 3.440 MW de potência, quando esta entrou em operação em 1974.

A companhia chinesa, que opera as maiores hidrelétricas do mundo - inclusive Três Gargantas, na China, que dá nome à companhia -, arrematou as usinas em um leilão de relicitação realizado no fim de 2015. A Cesp devolveu os ativos à União depois de recusar as regras para renovação das concessões criadas pela Medida Provisória (MP) 579, convertida na Lei 12.783, de 2013.

"Encontramos as usinas com alto risco, sem modernizações, só com manutenção básica dos equipamentos. A Cesp queria sair das usinas e fez uma gestão de acordo com isso", disse Teodoro.

Reforma deve trocar equipamentos obsoletos e analógicos para que usinas ganhem eficiência e confiabilidade

Hoje, a CTG busca implementar eficiência e digitalização nos ativos, que são quase todos analógicos, operados manualmente por funcionários da companhia. A situação é precária. Para evitar que operadores mexam em equipamentos errados, são colocados recados de papel nas máquinas, além de cadeados. A operação de cada uma das 34 turbinas é individual, e não centralizada. Os funcionários anotam os números das máquinas manualmente para que sejam colocados no sistema.

"Mexemos não só nas máquinas, mas também com investimentos em capacitação dos funcionáros", disse Jorge Okawa, diretor de Engenharia e Capex da companhia, responsável pelo processo de modernização.

Um dos objetivos da reforma é justamente substituir a coleta de dados manuais, com a criação de um centro de operação centralizado para todas as usinas do grupo, que deverá ficar em Ilha Solteira. "Vamos fazer a parametrização dos dados e melhorar a prevenção de eventos", disse Okawa.

Para isso, muitos dos atuais funcionários das duas usinas estão sendo capacitados para lidar com as novas tecnologias. A redução do quadro de funcionários deve ser uma consequência, mas a companhia pretende aproveitar o momento em que as usinas se encontram, com envelhecimento dos contratados e muitos prestes a se aposentarem. "Temos o desafio de fazer a sucessão e o repasse de conhecimento nas usinas", disse Teodoro. Segundo Ogawa, em torno de 80% dos funcionários da Cesp continuaram nas usinas.

A modernização também está ajudando a criar empregos. Por causa das obras, a usina já chegou a ter 480 funcionários trabalhando durante a reforma. Agora, são 260 contratados.

As duas usinas acabaram se transformando em dois canteiros gigantes de obras, comportando a operação rotineira das hidrelétricas e também máquinas imensas suspensas sendo transportadas de um lado para outro.

Atualmente, o plano de modernização das usinas se encontra na conclusão da primeira fase, na qual foi feita uma concorrência nacional vencida pela Voith. A companhia alemã trabalha em um espaço cedido pela CTG em Ilha Solteira na reforma das máquinas, enquanto que, em Jupiá, os trabalhos acontecem no espaço ocupado também pelas máquinas em operação na usina.

A previsão inicial era de que essa fase, na qual serão trocadas duas máquinas de cada usina, duraria oito meses. No entanto, atrasos e "surpresas" fizeram com que o prazo crescesse para 10 meses. Um dos obstáculos foi um problema em uma turbina francis de 172 MW de Ilha Solteira, que precisou ir para a fábrica da Andritz, em Araraquara, para ser reformada. O transporte da peça, por 400 quilômetros, levou 13 dias. A expectativa é que o retorno a Ilha Solteira leve outros cinco dias e termine nesta semana.

O desafio da CTG é ainda maior pelo fato de que as turbinas serão totalmente reformadas com as usinas em operação. Para evitar punições da Aneel, apenas duas máquinas de cada usina podem ser paralisadas por vez. Toda a reforma será concluída ao longo de 10 anos. "É como trocar os pneus com o carro andando", contou Teodoro.

Durante os 30 anos de concessão, cada uma das máquinas pode ficar parada por até 12 meses para manutenções e consertos, sem afetar a disponibilidade das hidrelétricas - e sem a redução a receita da CTG e nem a aplicação de penalidades. O objetivo da chinesa é não "gastar" todo esse período nessa reforma. A previsão é de que cada máquina vá ficar parada por, em média, 10 meses, restando ainda dois meses que poderão ser utilizados no caso de eventuais problemas ao longo da concessão.

A companhia conseguiu autorização da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para parar duas máquinas por vez ao explicar que o projeto mostra o compromisso da CTG com o setor elétrico brasileiro. A ideia não é fazer uma reforma que dure os 30 anos da concessão, mas investir na renovação dos ativos, com possível ganho de potência com a troca das máquinas. Nos 20 anos restantes em que a chinesa vai operar essas usinas, a companhia não descarta fazer novos investimentos em tecnologia e modernizações.

A experiência pioneira nessa reforma será levada para a China e também para outros ativos de geração no Brasil que precisarão, eventualmente, passar por modernizações semelhantes, dada a idade avançada dos ativos. Para garantir a troca de informações, a CTG trouxe 10 engenheiros da China para participarem da reforma.

O Valor procurou a Cesp, antiga concessionária das duas usinas. A estatal paulista informou que utiliza e sempre utilizou "as melhores práticas de manutenção de seus ativos de geração", garantindo a qualidade da operação, disponibilidade das máquinas e confiabilidade operacional superior aos requisitos definidos pela Aneel, e que "jamais se descuidou" de suas responsabilidades junto ao poder concedente. Segundo a companhia elétrica, que está em processo de privatização, em junho de 2016, data da entrega das concessões à CTG, os indicadores de disponibilidade das duas hidrelétricas eram superiores às referências definidas pela agência reguladora.

Planos da CTG movimentam cadeia local de fornecedores

Os investimentos bilionários em implementação pela China Three Gorges (CTG) na modernização das hidrelétricas Jupiá e Ilha Solteira foram bem recebidos pela indústria de máquinas e equipamentos do setor, que enfrenta uma estiagem de novos projetos de geração hídrica.

A chinesa deve concluir em breve a primeira fase do projeto, que envolveu investimentos da ordem de R$ 300 milhões e a reforma de quatro máquinas, duas de cada usina. Para isso, a CTG fez uma licitação nacional, na qual a Voith venceu as concorrentes GE e Andritz. Inicialmente, a previsão era de que esta etapa paralisasse as turbinas afetadas por até oito meses, mas problemas fizeram com que a fase fosse estendida para 10 meses de duração.

Ao fim desta semana, deve retornar à hidrelétrica de Ilha Solteira, a maior das usinas da CTG no Brasil, uma turbina tipo francis que precisou ser enviada à fábrica para reforma. Nesse caso, a Andritz foi vencedora do contrato, pela proximidade da unidade fabril, localizada em Araraquara, com a usina. Ainda assim, o transporte da peça, de 150 toneladas, foi um desafio. Por sua dimensão, havia limitação de horários em que a turbina pode percorrer os 400 quilômetros até a fábrica.

Com o retorno da peça, a unidade de geração em questão será remontada, aproximando a primeira fase da modernização do fim.

A segunda fase deve começar em seguida, com duração prevista de três anos. O prazo maior será necessário pois, além da reforma de oito máquinas, quatro de Jupiá e quatro de Ilha Solteira, a CTG aproveitou o mesmo contrato para instalar toda a automação e também trocar os transformadores elevadores - equipamentos que recebem a energia elétrica e a transformam em alta tensão - das duas usinas. Também serão reformados os vertedouros das hidrelétricas.

A intenção de contratar os equipamentos antecipadamente é manter as usinas com a operação "uniforme", o que ajudará nos ganhos de eficiência e confiabilidade, explicou Jorge Okawa, diretor de engenharia e capex da companhia, responsável pelo processo de modernização.

Nessa segunda etapa, a CTG teve tempo suficiente para fazer uma concorrência internacional. Isso, e o escopo maior do projeto, possibilitaram uma negociação em termos mais "favoráveis" para a companhia, disse Okawa. A chinesa pretende investir cerca de R$ 700 milhões nessa fase.

A GE vai liderar o consórcio do fornecimento dos equipamentos para modernização e reforma das oito unidades geradoras, em parceria com as chinesas Harbin Electric Machinery Company e com a China Power Construction Corporation. A brasileira WEG será responsável pelo fornecimento dos transformadores elevadores para todas as 30 máquinas que ainda não foram modernizadas, para garantir a uniformidade das operações. Por fim, a chinesa Sepco1 vai fornecer a automação das máquinas.

As contratadas usarão o mesmo espaço hoje ocupado pela Voith para a reforma, e os funcionários também poderão ser reaproveitados. A CTG Brasil também exigiu, nos contratos, que os projetos usem um percentual elevado de mão de obra brasileira.

A terceira etapa da reforma das hidrelétricas só deve ter uma licitação quando a segunda estiver perto do fim. Segundo Okawa, das 34 unidades geradoras das duas usinas, a intervenção "mais forte" será em 22.

EM OBRAS - Dois anos após assumir a operação do complexo hidrelétrico de Jupiá e Ilha Solteira, a China Three Gorges (CTG) está concluindo a primeira fase de modernização das usinas, que no total deverá levar dez anos, ao custo de R$ 3 bilhões. Segundo o diretor de operação da CTG, César Teodoro, os planos foram acelerados por falhas em três unidades geradoras.

Usinas foram construídas entre os anos de 1960 e 1970

Construídas em plena ditadura militar (1964-1985), as hidrelétricas de Jupiá e Ilha Solteira, no rio Paraná, foram projetos prioritários para a segurança energética do país e os interesses do governo do Estado de São Paulo da época.

Jupiá, com 1.551 megawatts (MW) de potência e 14 unidades geradoras com turbinas tipo kaplan, com pás móveis, teve sua construção iniciada em 1961 e foi concluída em 1974. Originalmente chamada de hidrelétrica Engenheiro Souza Dias, a usina fica na divisa de Mato Grosso do Sul e São Paulo, entre os municípios de Três Lagoas (MS) e Castilho (SP).

A hidrelétrica perdeu o posto de maior usina do Brasil para a vizinha Ilha Solteira, que começou a ser construída em 1966 e finalmente foi finalizada em 1978, com 3.444 MW de potência por meio de 20 unidades geradoras com turbinas tipo francis.

Também no rio Paraná, a usina, a maior de São Paulo, está entre Selvíria (MS) e Ilha Solteira (SP). A cidade com o nome da usina, que se desenvolveu a partir de uma vila construída para a habitação dos operários, só passou oficialmente a existir em 1991. O reservatório da usina é interligado com a hidrelétrica de Três Irmãos (que também era da Cesp e foi vendida em 2014) por meio do canal Pereira Barreto, que tem 9.600 metros de comprimento.

Além de terem contribuído para o desenvolvimento da região, as duas hidrelétricas são consideradas muito importantes para o Sistema Interligado Nacional (SIN) por estarem próximas do centro de carga, o que reduz custos de transmissão.

Por Camila Maia