Rombo no mercado de eletricidade deixa Petrobras e usinas de cana com milhões a receber
Questionamentos de operadores de hidrelétricas sobre custos com a compra de energia mais cara gerou guerra de liminares
23/08/2018

Folha/Reuters - Uma disputa judicial entre empresas de energia e o governo pelas regras do chamado "risco hidrológico" tem deixado bilhões de reais em aberto no mercado de eletricidade e provocado revolta entre os impactados pelo "rombo", que incluem desde a Petrobras até usinas de cana-de-açúcar e comercializadoras de energia.

A Unica (União da Indústria de Cana-de-açúcar), que representa as usinas do centro-sul, estima que o setor tem R$ 300 milhões a receber, enquanto a Petrobras, apesar de ter ingressado na Justiça, não recebeu cerca de R$ 40 milhões na última liquidação financeira do mercado de curto prazo de eletricidade.

Já a unidade de comercialização de energia do BTG Pactual chegou a acumular crédito de R$ 2 bilhões antes de também ir à Justiça.

O problema do risco hidrológico começou em 2014, quando a seca passou a reduzir a capacidade de geração das hidrelétricas. Para honrar com os contratos assumidos, as usinas passaram a ter que comprar energia no mercado de curto prazo, a preços mais elevados.

A situação se agravou porque a ONS (órgão federal que controla a operação das usinas) passou a priorizar o acionamento de usinas térmicas, para preservar os reservatórios de água. Assim, mesmo que as usinas tivessem capacidade para operar, eram "impedidas" pelo governo.

A reação dos geradores foi acionar a Justiça: diversas associações conseguiram liminares que isentavam as empresas de arcar com esses custos, ou ao menos parte deles.

O resultado é uma conta de cerca de R$ 7 bilhões na CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), órgão no qual ocorre a liquidação dos contratos de compra e venda de energia elétrica.

O rombo tende a crescer a cada mês. Só em junho, na liquidação mais recente realizada pela CCEE, foram movimentados R$ 10,2 bilhões em operações, mas apenas R$ 1,99 bilhão foi arrecadado para pagar os agentes com créditos a receber.

Até o fim do ano, o rombo pode chegar a R$ 13 bilhões, caso não haja uma solução.

"Com a judicialização do mercado por conta das liminares (...), nos últimos 12 meses, 98% dos agentes da CCEE receberam cerca de 10% de seus créditos, sendo que nas últimas liquidações esse grupo não conseguiu receber qualquer valor", disse a CCEE em nota.

Sem receber, diversas empresas passaram também a acionar a Justiça para conseguir prioridade no recebimento dos valores arrecadados, acirrando a briga ainda mais.

A Petrobras, que opera termelétricas e conta com recursos das liquidações na CCEE para pagar custos de combustível, foi uma das empresas que buscou prioridade nos tribunais, com uma liminar obtida pela Abraget (Associação Brasileira de Geradores Termelétricos), mas ainda assim tem sido impactada.

"Na liquidação financeira ocorrida em 7 de agosto, a Petrobras foi exposta a uma inadimplência de 25,1% de seus créditos totais, o que equivale a R$ 39,4 milhões (...) o problema da inadimplência na CCEE compromete o correto funcionamento do mercado e afeta todos os agentes", disse a estatal em nota.

Outras empresas, sem liminares, têm sido muito mais afetadas, como usinas de cana-de-açúcar que produzem energia com biomassa, o que levou a uma movimentação da Unica junto ao governo em busca de soluções.

O gerente de bioeletricidade da Unica, Zilmar de Souza, disse que as usinas estimam ter R$ 300 milhões em créditos retidos na CCEE devido aos valores em aberto no mercado.

"Essa situação está ficando insustentável. Nossa estimativa é que neste ano a gente tenha, por conta desse imbróglio, deixado de estimular algo como no mínimo 10% de geração adicional para a rede pelas usinas de biomassa. Não é estimulante buscar essa geração se você não vai receber, só vai ter o custo", explicou.

Comercializadoras de eletricidade também têm reclamado muito dos impactos da briga de liminares, em um clima de insatisfação que aumentou ainda mais depois que algumas empresas do setor, como o BTG Pactual, conseguiram decisões judiciais para prioridade nos créditos, enquanto outras seguem sem receber.

Uma fonte com conhecimento do assunto disse que a unidade de comercialização do BTG decidiu ir à Justiça depois de não ver perspectiva de solução de curto prazo para o problema e diante de quase R$ 2 bilhões em créditos acumulados pela empresa em suas operações no mercado.

Procurado, o BTG não comentou.

A Abraceel, associação que representa as comercializadoras, tentou uma liminar em nome de todos agentes da categoria, que foi negada, mas o presidente da entidade, Reginaldo Medeiros, disse que considera injusto criticar a busca de algumas comercializadoras por soluções individuais na Justiça.

"Alguém não pagou uma conta, foi para a Justiça para não pagar e a conta sobrou para quem era credor. É uma situação de absoluta injustiça, o credor leva um calote e ainda é visto como criminoso", afirmou.

Ele adicionou que o risco hidrológico "não é um problema dos comercializadores" e acusou o governo de ser "absolutamente omisso" na busca de uma solução para o problema no mercado.

SOLUÇÃO INCERTA - O governo tem apostado em resolver a disputa bilionária por meio de um acordo para compensar parcialmente as perdas dos geradores hídricos pelos custos com o risco hidrológico, desde que eles, em troca, retirem as liminares que travam o mercado.

O acerto seria viabilizado com a extensão de contratos de concessão das hidrelétricas envolvidas na briga, mas isso exigiria uma alteração legal que foi proposta em um projeto de lei em tramitação no Senado.

O problema é que o projeto sobre o assunto trata também da privatização de distribuidoras de energia da Eletrobras, um tema polêmico e que tem atrasado a deliberação da matéria em ano eleitoral.