Pós-Brumadinho, a ‘nova’ política nacional de atingidos por barragens
Artigo de Renata Messias Fonseca e Julia Heidrich Sagaz, do FMASE
19/07/2019

Estadão - 18.07.2019 - Desde o fatídico desastre ocorrido na barragem de rejeitos de minério de ferro da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, dezenas de projetos de lei foram apresentados perante o Congresso Nacional visando incrementar a Lei de Segurança de Barragens.

Paralelo e apensados a referidos projetos, emergiram outros que não tratam especificamente da hipótese de rompimento de barragens, mas das indenizações e compensações devidas aos interferidos pela implantação de empreendimentos compostos por barramentos. O escopo das discussões, portanto, deixou de ser o rompimento de barragens de rejeito de mineração para englobar a implantação de todo e qualquer barramento.

Foi nesse cenário que, no último dia 25 de junho, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 2788/2019, que visa instituir a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e o Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens, além de discriminar os direitos das Populações Atingidas por Barragens e estabelecer regras de responsabilidade social do empreendedor.

Trata-se de uma adequação do PL n.º 29/2015, que foi proposto pelo Deputado Nilton Leitão ainda em 2015 – não tendo apresentado movimentações relevantes desde então – com o objetivo de delimitar a população atingida pela construção, enchimento do reservatório e operação de barragens e estabelecer as possíveis formas de indenização. Em sua nova roupagem, e pegando carona na intensa movimentação do Congresso Nacional após o desastre de Brumadinho, a proposta atual da PNAB engloba também os casos de emergência decorrentes de vazamentos ou rompimentos de barragens, ocorridos ou iminentes, trazendo novas modalidades de indenização.

A adaptação do texto para incorporar ao conceito de atingidos as vítimas de desastres provenientes do rompimento de barragens, além de torná-lo midiático, retira a atenção de seu escopo principal, que é definir o procedimento que deverá ser observado para fins de indenização das pessoas cujas propriedades ou modo de vida sejam interferidos pela implantação de barramentos, e que hoje segue o disposto na Constituição Federal e na legislação civil sobre desapropriação, aquisição de bens e indenização de danos.

Não obstante a relevância da questão, é inegável que o texto aprovado pela Câmara não representa uma proposta exequível, ao menos para o setor elétrico.

Inicialmente porque a ausência de distinção entre as medidas destinadas aos interferidos pela implantação e operação de barragens e aos atingidos pelo rompimento dessas estruturas permite interpretações díspares e equivocadas sobre a abrangência da norma, gerando insegurança aos seus destinatários. Veja-se, por exemplo, que é prevista a criação de programas específicos para atendimento dos trabalhadores das obras, em que pese esse grupo não ser interferido pela implantação e operação do empreendimento, mas eventualmente pela ruptura do barramento. Ou seja, eventual programa seria elaborado em tese, sem que se possa precisar o momento e a magnitude de eventual impacto causado aos trabalhadores.

No geral, o conceito de atingido proposto pelo PL é extremamente amplo e subjetivo, impedindo delimitar ao certo qual população deverá ser agraciada pela política instituída, o que torna inviável o cálculo apurado do custo de um empreendimento hidrelétrico para fins de apresentação de proposta em leilão de energia.

Outro fator relevante refere-se ao fato de o projeto de lei remeter o tratamento das questões afetas aos atingidos por barragens ao processo de licenciamento ambiental, ou seja, a programas ambientais, sendo que um Comitê Local será responsável pelo acompanhamento, fiscalização e avaliação do Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens. Em outras palavras, um agente externo ao Sistema Nacional do Meio Ambiente atuará no processo de licenciamento, de forma sobreposta ao órgão licenciador, fiscalizando e acompanhando um programa nele estabelecido.

Essa previsão viola o disposto na Política Nacional do Meio Ambiente, na Lei Complementar n.º 140/2011 e o estipulado pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente, no sentido de que cabe ao órgão licenciador a proposição das condicionantes ambientais e o monitoramento de sua execução. Ainda, traz para o bojo do processo de licenciamento o tratamento de uma questão que compete aos órgãos fiscalizadores dos respectivos setores regulados, qual seja, a segurança das barragens.

Não fosse suficiente, tem-se ainda a imposição do pagamento de uma indenização pelo deslocamento compulsório de atingidos e de uma compensação social para reparar danos morais e abalos psicológicos por eles sofridos em razão, por exemplo, do rompimento de laços familiares quando da implantação dos empreendimentos. Trata-se de uma presunção de ocorrência de dano moral em razão da implantação de uma atividade lícita (empreendimento de utilidade pública concedido e autorização pela União e licenciado perante os órgãos competentes) e ambientalmente controlada, que contraria o disposto no Código Civil a respeito do dever de reparação de dano.

Ao final, o PL prevê ainda a possibilidade de a União, arbitrariamente, aplicar recursos para resgate do passivo social decorrente da implantação de barragens antes do advento da lei, resguardado o direito de regresso contra os respectivos empreendedores, sem estabelecer qualquer preceito para aferimento de referido passivo ou condições para concessão de indenizações.

Essa medida, além de gerar enorme insegurança jurídica aos empreendedores de todo o país, refletirá no preço da energia, já que os empreendimentos implantados no passado sob as condições legais então vigentes terão sua realidade alterada, o que inevitavelmente ocasionará o desequilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão e a necessidade de sua adequação, a ser feita mediante o aumento da tarifa de energia. Isso sem falar na expectativa gerada nas comunidades próximas aos empreendimentos, que em muitos casos será frustrada, e na facilitação da ação de oportunistas, que acabam por desabonar a imagem dos reais atingidos.

Em outras palavras, nos moldes propostos, a PNAB gera insegurança aos empreendedores, poder concedente e órgãos ambientais, afastando investimentos no setor elétrico e colocando em risco o princípio da modicidade tarifária.

Não há que se opor qualquer resistência às propostas legislativas que visem estabelecer critérios para garantir o atendimento das populações interferidas pela implantação de empreendimentos ou acidentes ambientais – sejam eles ocasionados por rompimentos de barragens ou não. É preciso, contudo, avaliar a efetividade de propostas cujo rigor tenha como consequência o incremento exacerbado dos valores dos serviços essenciais, como o fornecimento de energia, ou mesmo a inviabilização de projetos necessários ao desenvolvimento nacional.

*Renata Messias Fonseca é coordenadora do Grupo de Trabalho de Licenciamento Ambiental do Fórum do Meio Ambiente do Setor Elétrico; coordenadora do Comitê de Meio Ambiente da Associação Brasileira de Companhias de Energia Elétrica; sócia da Borges & Almeida Advocacia e da Dominium Ambiental Ltda.

*Julia Heidrich Sagaz é coordenadora do Grupo de Trabalho de Licenciamento Ambiental do Fórum do Meio Ambiente do Setor Elétrico e coordenadora de Meio Ambiente da Associação Brasileira de Investidores em Autoprodução de Energia