Mudança de regra atinge a geração distribuída
Os efeitos a serem sentidos também variam dependendo do perfil de consumidor, se é residencial ou comercial
16/09/2019

Valor - As mudanças nas regras de geração distribuída - categoria na qual o consumidor gera sua própria energia, localmente ou de forma remota - a partir de 2020 podem inviabilizar investimentos em novos empreendimentos em grande parte do país, de acordo com um estudo feito pela Clean Energy Latin America (Cela) com a Bright Strategies. O negócio, atualmente, têm incentivo que o tornam atrativo ao investidor.

Desde que as regras atuais entraram em vigor, em 2016, o crescimento dos projetos de geração distribuída tem sido exponencial. Até o início de setembro, havia 1,3 gigawatts (GW) de potência sendo gerada na categoria, alta de 84,9% em relação ao total no fim de 2018. Ano passado, quando os investimentos no setor somaram R$ 2 bilhões, o crescimento foi de 157,5%. Neste ano, a expectativa é de que os investimentos sejam pelo menos o dobro, enquanto as empresas correm para fechar contratos dentro das regras atuais.

No cenário considerado mais provável pela análise, a geração distribuída de forma remota chega a ficar inviável para consumidores comerciais de três das 28 distribuidoras de energia analisadas. Para consumidores residenciais, a tendência é ainda pior. Projetos de locação na modalidade geração compartilhada ficariam viáveis em apenas cinco das 28 concessões.

A geração distribuída é assim chamada por ser a geração de energia pelos próprios consumidores, que pode acontecer de forma remota (como com a construção de uma central de geração hidrelétrica dentro da mesma área de concessão) ou diretamente no seu estabelecimento (com a instalação de painéis solares no telhado de uma residência, por exemplo).

A energia gerada e não consumida imediatamente é injetada na rede, se transformando em um desconto para o consumidor. Atualmente, cada quilowatt-hora (KWh) gerado é compensado com outro KWh, mesmo nos casos de geração remota.

A tarifa de energia é composta por duas partes: o custo da energia e o uso da rede (de transmissão e distribuição). A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) propôs uma nova modernização nas regras desse tipo de geração para que a compensação da energia gerada não incida sobre o custo do uso da rede, uma vez que, mesmo com a instalação da sua própria forma de gerar, o consumidor continue utilizando a estrutura. No caso de geração remota, o uso da rede é ainda mais evidente, já que a energia será gerada em outra localidade.

Por exemplo, quando o Itaú Unibanco contrata energia de geração distribuída remota para suas agências, ele é compensado tanto na tarifa de energia quanto no custo da transmissão e/ou distribuição. Quem paga essa compensação é o restante do sistema, ou seja, o consumidor comum.

As mudanças propostas são complexas e graduais, na tentativa do regulador de minimizar os impactos negativos para os consumidores (que podem chegar ao custo de R$ 68 bilhões no longo prazo, apontam estimativas da agência) sem inviabilizar o avanço desse tipo de geração. Como projetos de geração remota dependem mais da rede do que aqueles consumidores com geração local, a Aneel propôs regras diferentes para as duas categorias. Os efeitos a serem sentidos também variam dependendo do perfil de consumidor, se é residencial ou comercial, por exemplo.

No caso de geração junto da carga (como em telhados solares), a Aneel sinalizou, em um documento que serve para balizar a audiência pública sobre o tema, que as regras atuais ficarão vigentes até que o volume instalado atinja 3,36 gigawatts (GW) de potência. A partir desse “gatilho”, a energia gerada e não consumida será compensada integralmente em relação à tarifa, mas na parcela de uso do fio, a compensação será reduzida, não incluindo a componente que agrupa remuneração dos ativos da rede.

Para a geração remota, a Aneel sinalizou que serão feitas duas mudanças. Inicialmente, quando a geração instalada atingir 1,25 GW, será acionado o primeiro gatilho, na qual a compensação na tarifa do fio também perderá a componente que remunera os ativos da rede. Quando a potência total de geração distribuída remota atingir 2,13 GW, será atingido um segundo gatilho: a compensação sobre a tarifa fio se dará apenas sobre a parcela que remunera as perdas de energia.

As regras devem ficar ainda mais complexas se, como previsto, houver a “regionalização” dos gatilhos. Isso significa que as mudanças acontecerão de forma separada em cada área de concessão de energia do país. A Cela estima, por  exemplo, que as distribuidoras Cemig, Energisa Minas Gerais e Enel Ceará atingirão o primeiro gatilho para geração remota já em 2020, devido à grande penetração desse tipo de projeto nessas regiões.

Para geração local, a primeira concessionária a atingir o gatilho das mudanças será a Energisa Mato Grosso, em 2020. Em 2021, será a vez de Cemig, Energisa Minas Gerais e RGE (concessão da CPFL Energia no Rio Grande do Sul).

A análise da Cela utilizou um software desenvolvido pela companhia, o Re.value, que serve para avaliar a viabilidade econômico-financeira de projetos de geração distribuída. A projeção considerou a queda do custo dos equipamentos de geração solar fotovoltaica, seguindo dados compilados pela Bloomberg, e também a evolução de tarifa das distribuidoras com aumento pela inflação. Se o valor presente líquido (VPL) dos projetos for positivo, ele é considerado viável, uma vez que não chega a dar prejuízo ao investidor.

O pior cenário é nos projetos de geração remota. “Vai inviabilizar a GD em diversas áreas de concessão”, disse Camila Ramos, diretora e fundadora da Cela.

Esse é justamente o segmento que mais tem crescido, ancorado nos esforços das empresas de reduzirem custo com energia elétrica. O McDonald’s, por exemplo, fechou recentemente um acordo com a AES Tietê, que vai construir fazendas solares remotas em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, que vão gerar créditos para reduzir a conta de luz de 39 lojas. Outro destaque no segmento é o Banco do Brasil, que fez uma concorrência em 2018 para investir em geração distribuída. A EDP Brasil, que venceu a licitação, está construindo usina de 5 MW no norte de Minas Gerais, energia suficiente para atender 58 agências.

Os projetos remotos também atendem consumidores residenciais que não têm recursos próprios para investir ou sem espaço para instalação de geração. Nesse caso, a geração é chamada de “compartilhada”.

A maior parte dos empreendimentos remotos são alugados dos geradores por um período de contratação. Nesses projetos, a análise assumiu que o consumidor terá um desconto de 10% na tarifa, e o impacto da rentabilidade ficou todo com o proprietário do ativo de geração.

Nesse cenário de aluguel na modalidade de consumo remoto, a geração distribuída ficaria inviabilizada em três das 28 áreas de concessão analisadas para consumidores comerciais. Para residenciais na modalidade de geração comercial, os projetos só seriam viáveis em cinco concessões.

O estudo conclui que, no total, a geração compartilhada ficaria inviável para os consumidores em 82% das concessões analisadas, enquanto o consumo  remoto ficaria inviável em 16% delas.

Segundo Camila, o efeito é particularmente negativo para a indústria solar fotovoltaica do país, uma vez que esta é a modalidade de geração mais comum nos projetos de geração distribuída. Para se ter uma ideia, 88,8% da potência total instalada no país em geração distribuída (1,15 GW) é dessa fonte.

“A importância desse estudo é trazer mais consciência para o setor sobre os reais impactos da mudança proposta. A revisão que a Aneel propõe vai impactar o setor num alcance maior que a agência tem demonstrado”, disse Bárbara Rubim, sócia da Bright Strategias e vice-presidente de geração distribuída do conselho de administração da Associação Brasileira de Geração Solar Fotovoltaica (Absolar).