Os efeitos da pandemia no setor elétrico brasileiro
Opinião - Elisa Bastos Silva - O racionamento de 2001 e a crise de 2014 podem ajudar as instituições públicas a desenhar soluções adequadas
16/04/2020

Valor Econômico - 16.04.2020 - Em texto clássico, Albert Einstein nos diz que a crise é a “maior benção que pode acontecer às pessoas e aos países, porque a crise traz progressos”. Ler isso no meio do enfrentamento a uma pandemia pode parecer cruel ou desarrazoado, mas o físico alemão tem muita razão no que disse. Isaac Newton, isolado em casa para proteger-se da Grande Praga de Londres, uma epidemia de peste bubônica que afetou a Inglaterra entre 1665 e 1666, desenvolveu a teoria da gravidade e as bases do Cálculo Moderno. Após a Gripe Espanhola (1918-1920), os sistemas de saúde no mundo tiveram notável desenvolvimento. Einstein, portanto, nos convoca a perceber as crises como oportunidade para inovar, romper antigos modelos mentais e construir novas estruturas, novas soluções.

O setor elétrico tem sido constantemente desafiado por crises. Nenhuma delas, entretanto, com as características e consequências de uma pandemia, com proporções e alcance que desafiam a nossa capacidade de reação. Nem o mais pessimista dos planejamentos estratégicos previu algo dessa magnitude. Portanto, não há solução de prateleira para sanear os efeitos da pandemia na cadeia produtiva do setor elétrico.

O racionamento de 2001 e a crise de 2014 podem ajudar as instituições públicas a desenhar soluções adequadas

O combate ao vírus, em sentido médico, exige isolamento, mas em sua dimensão econômica requer união. Dada a essencialidade da energia elétrica para a vida das pessoas e o desempenho geral da economia, é necessário que o regulador, o formulador da política pública e as demais entidades do setor pensem de modo conjunto e estrutural medidas para assegurar a manutenção da prestação do serviço e o equilíbrio econômico-financeiro do setor, com adequada alocação dos danos e preservação de contratos.

Em março, a Aneel estabeleceu medidas emergenciais para assegurar o fornecimento de energia elétrica e preservar a vida dos colaboradores e dos consumidores, com vedação ao corte de energia dos colaboradores e dos consumidores, residenciais e serviços essenciais por 90 dias. As faturas impressas podem ser substituídas por faturas eletrônicas, e as distribuidoras devem viabilizar formas de atendimento não presenciais, dentre outras medidas.

Outras questões, no entanto, tem nos mobilizado, pois requerem mais aprofundamento e soluções estruturais. Com a retração da economia, a ameaça do desemprego e a consequente redução da renda, dois problemas iniciais precisam ser enfrentados: o risco da inadimplência e a redução do consumo geral de energia elétrica.

É necessário ter sensibilidade neste momento para encontrar um caminho do meio, soluções que considerem a contingência do consumidor e ao mesmo tempo mantenham a sustentabilidade do setor elétrico.

Para famílias com renda mensal de um salário mínimo ou àquelas que terão redução drástica de renda, o peso das despesas mensais será cruel. Não há como ser indiferente a esse cenário. As iniciativas para garantir o custeio das contas de luz dos consumidores da tarifa social e a renda básica emergencial são importantes para conter o agravamento da condição socioeconômica desses cidadãos.

No outro polo, a redução do mercado e o crescimento da inadimplência têm impacto direto no equilíbrio econômico e financeiro do setor elétrico. No atual modelo de comercialização de energia elétrica, as distribuidoras atuam como agente de arrecadação do setor. De uma receita total de cerca de R$ 210 bilhões ao ano, menos de 30% remuneram o serviço de distribuição, o restante da receita é destinado ao pagamento de tributos federais e estaduais, encargos setoriais que viabilizam as políticas públicas do setor, e custos com compra e transmissão da energia para o suprimento do mercado regulado.

Nesse sentido, as distribuidoras são os primeiros agentes da cadeia do setor elétrico a sentir os efeitos da pandemia.

Há ainda o impacto da brusca redução da demanda com sobra de energia contratada, que passa a ser um sobrecusto. Isso pressiona o caixa das empresas e, após algum tempo, a tarifa dosconsumidores.
Com a redução de faturamento, as distribuidoras podem não ser capazes de honrar pagamentos, o que afeta transmissoras e geradoras de energia, colocando seu funcionamento em risco.

Para conter esse efeito, a agência tomou outra medida em sua área de competência para adiantar às distribuidoras e aos consumidores livres cerca de R$ 2 bilhões, que ambos fariam jus ao longo dos meses, proporcionando assim, alívio aos caixas das distribuidoras.

O desafio do formulador da política pública, do regulador e demais agentes de toda a cadeia do setor elétrico é construir uma solução robusta para o problema, no tempo exato, sem o afogadilho que pode nos levar a decisões precipitadas e um desastroso day after, mas com o senso de urgência que o assunto exige. Por isso, o esforço conjunto é imprescindível para sairmos da crise melhor do que entramos.

Para que as medidas sejam eficazes, é necessário evitar que pressões dominem o ambiente de negociação, que haja uma coordenação integrada e a compreensão de que os danos precisam ser compartilhados por todos os segmentos.

A experiência do racionamento de energia de 2001 e da crise hidrológica de 2014 trouxe aprendizados importantes que podem ajudar as instituições públicas e privadas a desenhar soluções adequadas para o enfrentamento do problema. No entanto, a crise atual é singular e as soluções do passado podem não ser adequadas ou suficientes na atual conjuntura.

Olhando um pouco à frente, o destravamento das medidas de modernização do setor, que dependem da aprovação do PL 232, pode atuar como potencializador de soluções disruptivas, no médio e longo prazo, passada a primeira onda da pandemia. O desenvolvimento sócio-econômico do país com o setor modernizado será mais eficiente e sustentado.

Retomando o pensamento de Einstein “não podemos querer que as coisas mudem, se sempre fazemos o mesmo”. O ineditismo dessa crise pode nos ajudar a avançar no amadurecimento das propostas para o setor elétrico, fortalecê-lo e renová-lo. É preciso, no entanto, um esforço congregado. Juntos, seremos capazes de superar este desafio do mundo globalizado, onde a cooperação entre pessoas e instituições vai prevalecer no enfrentamento à pandemia.

Por Elisa Bastos Silva - Diretora da Aneel