Blecaute pode levar à revisão do modelo de governança no setor elétrico, diz Pepitone
Em entrevista exclusiva ao Valor, diretor-geral da Aneel diz que mudança é necessária para evitar que novas comunicações de falhas ou indisponibilidade de equipamentos passem despercebidas
01/12/2020

Valor Econômico - 29.11.2020 - O blecaute no Amapá, que pegou a população de surpresa na pandemia, pode levar as autoridades do setor elétrico reverem o modelo de governança e controle da confiabilidade do sistema. O ajuste é defendido pelo diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), André Pepitone. Para ele, a mudança é necessária para evitar que novas comunicações de falhas ou indisponibilidade de equipamentos passem despercebidas, como ocorreu com a subestação de Macapá.

Pepitone rejeita a ideia de que a agência foi omissa ou negligente, como apontou a decisão judicial que afastou a diretoria do órgão na última semana, derrubada após recurso. O diretor, porém, admite que aperfeiçoamentos precisam ser feitos — não só nos procedimentos de fiscalização e dinâmica de operação do sistema, mas no planejamento do setor, que deixou passar a falta de redundância na rede de transmissão que abastece o Estado.

Por falta dessa redundância, o Amapá não pôde contar com um meio alternativo para receber energia tanto do Sistema Interligado Nacional (SIN), que passou a fazer parte a partir de 2015, quanto das próprias hidrelétricas instaladas em seu território.

O diretor da Aneel falou sobre as urgências do setor, expostas pela crise de abastecimento no Estado, em entrevista concedida ao Valor PRO, serviço de informação em tempo real do Valor. Sobre os efeitos do blecaute na privatização da Eletrobras, ele defendeu que uma questão não guarda relação com a outra. Pepitone ressaltou que a agência prepara um “pente-fino” nas redes de transmissão para detectar riscos de novos apagões no Brasil. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Diante dos impactos e da duração da falta de luz no Amapá durante uma pandemia, pode-se dizer que a Aneel enfrenta o blecaute de maior repercussão da sua história?

André Pepitone: Este caso foi extremamente grave, porque houve a falta de um serviço público essencial em todo um Estado por mais de 72 horas, que ainda teve as consequências potencializadas pelo fato de ter acontecido num tempo de pandemia. O que aconteceu no Amapá é inaceitável. O setor elétrico brasileiro está sendo desafiado dentro desse episódio. Temos questões de planejamento, operação e fiscalização. Então, todo o setor, com todos os seus atores, estão sendo desafiados diante do que ocorreu no Amapá.

Valor: Quanto tempo a Aneel levará para apontar os responsáveis pelo blecaute?

Pepitone: A agência tem um protocolo a seguir, que leva um tempo. Estamos, agora, na etapa de colher os comentários dos envolvidos. E o passo seguinte é a emissão do relatório final de análise da perturbação, que deve ocorrer nos próximos dias. Ao mesmo tempo, teremos o resultado da fiscalização in loco nas instalações feita pela própria agência. O relatório, elaborado pelo ONS [Operador Nacional do Sistema], é necessário para seguirmos com o processo punitivo, onde a gente vai fazer um termo de notificação apresentando todas as irregularidades a todos, que vão ter a oportunidade de se manifestar. Só então isso deve resultar num auto de infração.

Valor: A Aneel já tem um diagnóstico preliminar que indica os problemas na operação, manutenção ou falta de investimento na rede?

Pepitone: A agência analisa a conduta de todos os atores nos termos do contrato de concessão e dos procedimentos de redes, que estabelecem as responsabilidades de cada um. Para algum apontamento nesse sentido, eu preciso dos relatórios que estão sendo elaborados. Então, falar das causas, agora, seria um pouco precipitado. Nossas equipes estão apurando isso de maneira célere. Portanto, tenho certeza de que, em breve, poderemos dar uma resposta.

Valor: É possível admitir que a agência falhou na fiscalização?

Pepitone: A Aneel tem a atribuição de fiscalizar o serviço de transmissão. Por sinal, é uma competência exclusiva dela. Não pode atuar nem com equipes terceirizadas e nem com as equipes das agências estaduais conveniadas. A fiscalização de todo o sistema de transmissão ocorre continuamente, desde o dia em que o contrato de concessão é assinado, passando pelas etapas de obras e entrada em operação comercial e, posteriormente, na análise dos indicadores de desempenho. O modelo que adotamos está alinhado às melhores práticas nacionais e internacionais. Fazemos a fiscalização por meio de pontos de controle preventivos, com três etapas — o monitoramento, a análise e a ação fiscalizadora propriamente dita. Com o monitoramento, a concessionária passa 100% do tempo fiscalizada. Os indicadores permitem de maneira mais assertiva fazermos a fiscalização. Até para quando formos in loco, agirmos mais direcionados, já sabendo das condições daquelas instalações, dos eventuais problemas. Até 2016, a fiscalização era praticam
ente in loco. Depois, a agência mudou e passou a adotar essa técnica com base nas recomendações da OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico], com o modelo de fiscalização responsiva. Com ela, a gente obteve uma redução de 54% dos desligamentos.

Valor: Como a agência vai se desvencilhar da ideia de que se fechou no “mundo das tabelas” e ignora o risco das informações prestadas não corresponderem à realidade do setor?

Pepitone: A fiscalização por monitoramento mudou o comportamento dos agentes fiscalizados. A gente observa que isso melhorou bastante de 2017 para cá. O fato é que esse trabalho é feito em conjunto com outros dois atores, o ONS e com a própria concessionária, a LMTE [Linhas de Macapá Transmissora de Energia, responsável pela subestação que deu origem ao blecaute no Amapá]. A concessionária tem obrigações claras. Ela tem que prestar o serviço com regularidade, continuidade, eficiência, atender a todas as regras de segurança e tem que prestar contas da sua atuação.

Valor: Mas o monitoramento da agência não evitou o blecaute no Amapá.

Pepitone: Lá na subestação são três transformadores, dois para operação e um reserva. Os dois transformadores que estavam em operação nunca apresentaram desvio nos indicadores que nós acompanhamos. Nos indicadores mensais de interrupção com corte de carga, nunca teve.

Valor: Existe a possibilidade da LMTE ter mascarado o real estado de conservação do empreendimento?

Pepitone: A empresa tem compromissos e deve seguir a regulação da Aneel. Não posso falar que mascarou, mas a responsabilidade de manter a instalação no nível ótimo de operação é da LMTE. Ela assumiu esse compromisso ao assinar o contrato de concessão com a União e posso dizer que não o fez, diante do episódio que estamos vivendo. É fato que a empresa não prestou o serviço da forma como deveria ter prestado. Ela é hoje a principal responsável por esse dano ao Amapá.

Valor: Os sinais de dificuldade financeira da LMTE no passado, com a recuperação judicial do antigo dono, a Isolux, e o pedido na Aneel de reequilíbrio do contrato, não seriam suficientes para justificar uma visita nas instalações?

Pepitone: A linha da LMTE gera uma receita que é capaz de sustentar a operação de tal forma que eventuais problemas financeiros da controladora exercem pouca ou quase nenhuma influência nessa concessão. De fato, eles chegaram a pleitear o reequilíbrio econômico da concessão em 2013, antes da entrada em operação comercial, por motivos relacionados ao atraso das licenças ambientais. Só que a Aneel só observou o problema financeiro do grupo Isolux quando, no leilão de transmissão de 2015, a empresa ganhou os lotes, mas não foram capazes de apresentar as garantias de fiel cumprimento dos contratos. Mas este indício esteve vinculado somente às novas aquisições, não às Linhas de Macapá.

Valor: Faltou, então, olhar com atenção o alerta da empresa ao ONS sobre a indisponibilidade do transformador reserva na Subestação Macapá?

Pepitone: Temos uma governança do setor. Temos que observar como está funcionando essa governança. Estamos investigando, com celeridade e rigor, justamente como é que está funcionando este fluxo de informações: quando foi apresentada essa situação, como se deu a análise disso e da consequência que a indisponibilidade do equipamento poderia trazer para o sistema. O que a gente precisa, com certeza, é aprimorar essa governança no setor, sobre o papel de cada instituição.

Valor: Por que o risco de colapso na rede do Amapá não foi levado às reuniões mensais do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrica (CMSE)?

Pepitone: Este é um ponto que está sendo objeto de detalhamento e rigorosa fiscalização da Aneel, justamente para saber como atuou esse fluxo de informação.

Valor: A Aneel não deve dar uma ênfase maior à fiscalização in loco? Não há uma autocrítica a ser feita nesse sentido?

Pepitone: Todo grande blecaute leva a um aprimoramento nos processos da agência. A diretoria determinou, agora, que deverá ter uma regra estabelecendo como deve ser feita a comunicação de equipamentos que estejam fora de serviço por longo período. Já temos procedimentos com esse comando, mas, considerando o caso do Amapá, vimos que só isso não basta. Temos que ter uma resolução deixando claro qual é a função de cada ator envolvido. Outras providências já foram tomadas. Vamos fazer um pente-fino, com uma fiscalização imediata e mais aprofundada das instalações. Será dado um passo além do que demos até agora. Já solicitamos informações ao ONS sobre linhas e subestações. A partir da próxima semana, como fizemos após o rompimento da barragem de Brumadinho, na verificação de todas as barragens de hidrelétricas, estamos identificando pontos de criticidade no sistema de transmissão para fazermos um trabalho in loco.

Valor: A Aneel reconhece que era preciso ter feito algum reparo no planejamento da rede do Amapá para aumentar a confiabilidade do sistema local?

Pepitone: O ministro de Minas e Energia [Bento Albuquerque] determinou que a EPE [Empresa de Pesquisa Energética] apresente um novo programa de atendimento do Amapá para estabelecer a segurança energética do Estado, tendo em vista que o planejamento atual, por questões óbvias, se demonstrou ineficiente, e contra fatos não há argumentos. Se esse planejamento com três transformadores levou a essa situação, significa que não está adequado. Além disso, dentro do Estado, somente a hidrelétrica Coaracy Nunes se liga direto à rede da CEA [distribuidora local]. Mas outras duas usinas, Cachoeira Caldeirão e Ferreira Gomes, precisam dessa subestação, que foi atingida no blecaute, para fazer a energia chegar à distribuidora. Como regulador, considero que essa carga poderia chegar à população por outra subestação. Se tivesse feito isso, o Estado não teria passado por essa situação, pois estaria sendo suprido por estas duas usinas.

Valor: Com o blecaute no Amapá, a Eletronorte assumiu um protagonismo com as medidas emergenciais para agilizar a recomposição do sistema local. Isso mostra que o sistema elétrico brasileiro não está ainda preparado para um modelo puramente privado?

Pepitone: Entendo que não há qualquer relação do que ocorreu no Amapá com o fato de ser público ou privado. Tivemos também uma série de perturbações que aconteceram em redes de empresas públicas. No caso do Amapá, de fato envolveu uma empresa privada, com um agente concessionário pujante dando assistência. Se fosse no Estado de São Paulo, na região da Cteep, aconteceria o inverso. A agência, ao regular o setor, não enxerga se o capital é público ou privado. Por ocasião do destino esse fato aconteceu com uma empresa privada. Mas o Brasil ainda precisa de muitos investimentos para expandir o setor elétrico. A agência reguladora atuando com transparência, previsibilidade e respeito aos contratos, com uma regulação estável, permite que investimentos [privados] sejam feitos no setor. Isso já foi dito sobre a Aneel de maneira assertiva pela Standard & Poor's e Moody's, em 2019. Nossa agenda de investimentos é alvissareira, pois, até 2022, vamos ter a necessidade de R$ 88 bilhões, tanto em usinas como em transmissão. Tenho certeza que o Estado brasileiro não tem condições de aportar esse valor para atender às necessidades do setor.

Por Rafael Bitencourt